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Vida nas organizações Joaquim Santini

A cultura sem coragem: quando os vínculos valem mais que a verdade

Publicado 31/10/2025 • 15:53 | Atualizado há 23 horas

Foto de Joaquim Santini

Joaquim Santini

Pesquisador e palestrante internacional, diplomado em Psicologia Clínica Organizacional e mestre em Consulting and Coaching for Change no Insead ( european business school, na França), graduado e mestre em Engenharia Mecânica pela Unicamp. Fundador da EXO - Excelência Organizacional.

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Pessoas se cumprimentando

As empresas não fracassam só por falta de estratégia, mas também pela falta de coragem. Coragem para decepcionar. Coragem para romper vínculos que já não servem. Coragem para aceitar a dor do necessário. Coragem para acelerar a implantação das Inteligência Artificial.

Há uma paralisia que se espalha por muitas, não todas, organizações contemporâneas — e ela não nasce da falta de recursos, mas da ausência de coragem. É uma forma sofisticada de covardia institucional, travestida de empatia, lealdade e respeito à história. Mas, no fundo, é medo. Medo de romper vínculos que envelheceram. Medo de decepcionar quem já foi importante. Medo de enfrentar o luto de uma decisão inevitável.

Nas empresas que amadurecem sem se renovar, pode ser instalada uma cultura sem coragem — uma trama silenciosa de lealdades, afetos e pactos que transformam o que um dia foi força em prisão. Líderes passam anos esbarrando nos mesmos rostos, repetindo as mesmas histórias, sustentando vínculos que se tornaram imunes à realidade. E quando chega a hora de agir — de desligar quem já não entrega, de romper com estruturas que perderam sentido — ninguém faz nada. Tudo se posterga, tudo se negocia. Até que o problema se torne parte do cenário.

O poder invisível dos vínculos

Tenho fé inabalável nos vínculos — eles dão alma à empresa e sustentam o sentido de pertencer. Sem vínculos, não há confiança, não há cultura, não há humanidade organizacional. Mas quando esses laços deixam de servir à empresa e passam a servir à preservação, tornam-se mortais.

Toda instituição vive sob laços invisíveis que garantem estabilidade, mas que também podem aprisionar. São pactos silenciosos que decidem o que pode — e o que não pode — ser tocado. No plano simbólico, a coragem é o ato de romper esse pacto — de sustentar a perda necessária para que algo novo possa nascer. Por isso é tão rara.

Desligar alguém leal por quinze anos se torna quase uma traição moral — mesmo quando essa pessoa já não responde às exigências de um mercado que pede agilidade, rapidez, adaptabilidade e domínio da inteligência artificial. O vínculo emocional substitui o critério funcional — e o resultado é a criação das “vacas sagradas” e dos “cargos-zumbis”: figuras simbólicas que sobrevivem por proteção, não por relevância.

A covardia simbólica

Essa dinâmica não é falta de técnica nem de competência — é covardia simbólica. O líder vê o que precisa ser feito, mas recua diante da dor do corte. Tem consciência da estagnação, mas escolhe a paz aparente do pacto.

Liderar é, em parte, decepcionar — não por vaidade, mas por responsabilidade. A coragem não é ausência de medo; é agir apesar dele.

A instituição entra, então, num modo de autoengano coletivo — um equilíbrio artificial mantido pelo medo do conflito. Vivemos uma modernidade líquida em que tudo muda rápido, menos os laços que sustentam o poder. São vínculos que se disfarçam de estabilidade, mas funcionam como âncoras: impedem o novo de emergir.

Quando o novo chega — e se cala

Essa cultura também engole os novos líderes. Muitos chegam cheios de energia, com clareza sobre o que precisa mudar, mas logo percebem o jogo subterrâneo: o colaborador improdutivo é amigo do diretor industrial; o gerente desmotivado tem a confiança do dono. E o líder, que poderia ser vetor de renovação, aprende rápido a regra não escrita, ou seja, não toque nas vacas sagradas.

Nesse ponto, o medo muda de forma. Não é mais medo de errar — é medo de romper com a história, de tocar nos vínculos que sustentam o inconsciente coletivo da empresa. A coragem vira risco político. E a omissão, um ato de autopreservação.

Mas toda omissão tem um preço. A covardia institucional é contagiosa: destrói o sentido do trabalho, desmoraliza as lideranças intermediárias e instala uma forma silenciosa de cinismo organizacional.

A coragem de internalizar a Inteligência Artificial

A mesma covardia que impede rupturas humanas é a que retarda a integração da Inteligência Artificial. Não é medo da tecnologia — é medo do espelho que ela representa.

Todos falam de IA, mas poucos têm coragem de trazê-la como agente real de transformação. As forças que protegem estruturas antigas são as mesmas que bloqueiam a inovação: vínculos, lealdades e medos. Por trás da hesitação tecnológica há uma hesitação emocional.

Internalizar a IA exige expor ineficiências, rever papéis, repensar lideranças e enfrentar o que estava acomodado. É olhar para dentro e admitir que a empresa, em muitos aspectos, ficou parada no tempo. Mas a coragem de adotar a IA não é apenas técnica — é psicossocial.

Ela exige romper pactos invisíveis que protegem a inércia e reconhecer que a inteligência não está mais apenas nas pessoas, mas também nos sistemas que aprendem conosco.

A IA não ameaça o humano; revela o que o humano teme encarar. As empresas que temem a IA não têm medo da tecnologia — têm medo do espelho que ela representa.

Coragem como função institucional

A coragem não é um ato heroico, nem uma virtude individual: é uma função institucional. É o gesto que permite que algo morra para que algo novo possa nascer. É o exercício de suportar o desconforto do luto organizacional — o vazio entre o que foi e o que ainda não é.

Ser corajoso não é ser cruel. É compreender que manter o que já morreu é decretar a morte do que ainda pode nascer.

Toda instituição precisa de alguém que exerça a função do negativo — o papel simbólico de interromper o ciclo do autoengano. A dinâmica organizacional só é viva quando há tensão entre ordem e desordem. Sem essa tensão, há apenas decadência organizada.

O chamado final

O que falta nas empresas não é propósito — propósito há em abundância. O que falta é coragem.

Coragem para encerrar ciclos. Coragem para enfrentar pactos afetivos que mantêm o velho respirando. Coragem para decepcionar — não por vaidade, mas por responsabilidade.

Empresas morrem porque preferem preservar a velha ordem a criar uma nova. E líderes não perdem relevância quando erram — mas quando deixam de agir.

Liderar, hoje, é ter coragem de desligar o que a cultura insiste em manter vivo — e de ligar, com lucidez e humildade, o que o futuro já acena.

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